19 julho 2007

Esquina


Era aquele o pouco luxo que se dava por dia.
No dia confuso, sob o sol das tardes de aquecimento global que franzia cenhos pela cidade, nas ruas caóticas, barulhentas e vazias de gentilezas, ela ia se equilibrando sobre o par de scarpins. Belos e torturantes sapatos, que combinados com a meia de nylon, a deixavam mais séria, mais sóbria, mais exausta.
No pulso, os ponteiros finos e dourados delatavam seu atraso, de minutos perdidos em coletivos lotados, de horas perdidas em devaneios atropelados. Chegava a pensar se tanto tempo perdido ia parar em algum lugar, somar-se a outros tempos perdidos de outras pessoas que devaneavam em algum coletivo lotado na volta pra suas casas em periferias pelo mundo...
Na meia hora por dia que tinha para almoçar um sanduíche, comprar remédio pro filho, pagar contas, ler o horóscopo de pé na banca, fazer as unhas e pensar em como a vida podia ser melhor, ela passava naquela esquina para encontrar com ele.
E ao ir caminhando em direção a ela, ia se esquecendo um por um os itens da lista de tarefas que não daria conta de fazer. E via as palmeiras do aterro e o obelisco da Rio Branco recortados sobre céu de azul cobalto, e sentia cheiro de mar.
Nessa hora ela caminhava devagar e sabia que ele estava chegando, às vezes correndo, às vezes com vagar, mas ele vinha e ela o esperava. Desacelerava o passo, lançava as pernas no ar quase em câmera lenta. Já sentia seu cheiro atrás de si quando virava a cabeça e fazia dançar no ar suas ondas dourado-médio de farmácia.
E ele vinha alcançá-la e a abraçava com a ternura e a saudade dos amantes incertos, fazia voar sua saia em ondulações performáticas e floridas, e o movimento da organza fina ia propagando ondas de eletricidade no ar que alcançava os transeuntes desavisados, os taxistas enfadados e os pedintes esfomeados. E a esses movimentos se seguiam outros quase tão ensaiados quanto, de virar de pescoços, espichar de olhos e cair de queixos.
E depois de transformar a sóbria secretária-recepcionista bilíngue em uma festa de cores e formas e cheiros e encantamento, ele seguia, virando outras esquinas, abraçando suas outras amantes, fazendo dançar outras saias...

2 comentários:

Zander Catta Preta disse...

Sabe... as risadas moram ali, na dobra da vida. A felicidade tem casa a umas duas quadras dali e o encantamento a mais seis casinhas.

É tudo morando junto, todos morando perto.

Tão perto.

J.M. de Castro disse...

Sinal de qualidade:querer reler e reler até o texto ser quase nosso, ou quase vida. E de dentro da gente o texto sai como sonho e esperança, ou como um encontro que se espera numa esquina, no meio da abjeta ocupação de todos os dias. O texto faz levantar saias e pés. Como música.