21 julho 2007


balanço as pernas aqui sentada na borda do tempo

e olho a vida passar nas brancas nuvens de formas engraçadas



19 julho 2007

Esquina


Era aquele o pouco luxo que se dava por dia.
No dia confuso, sob o sol das tardes de aquecimento global que franzia cenhos pela cidade, nas ruas caóticas, barulhentas e vazias de gentilezas, ela ia se equilibrando sobre o par de scarpins. Belos e torturantes sapatos, que combinados com a meia de nylon, a deixavam mais séria, mais sóbria, mais exausta.
No pulso, os ponteiros finos e dourados delatavam seu atraso, de minutos perdidos em coletivos lotados, de horas perdidas em devaneios atropelados. Chegava a pensar se tanto tempo perdido ia parar em algum lugar, somar-se a outros tempos perdidos de outras pessoas que devaneavam em algum coletivo lotado na volta pra suas casas em periferias pelo mundo...
Na meia hora por dia que tinha para almoçar um sanduíche, comprar remédio pro filho, pagar contas, ler o horóscopo de pé na banca, fazer as unhas e pensar em como a vida podia ser melhor, ela passava naquela esquina para encontrar com ele.
E ao ir caminhando em direção a ela, ia se esquecendo um por um os itens da lista de tarefas que não daria conta de fazer. E via as palmeiras do aterro e o obelisco da Rio Branco recortados sobre céu de azul cobalto, e sentia cheiro de mar.
Nessa hora ela caminhava devagar e sabia que ele estava chegando, às vezes correndo, às vezes com vagar, mas ele vinha e ela o esperava. Desacelerava o passo, lançava as pernas no ar quase em câmera lenta. Já sentia seu cheiro atrás de si quando virava a cabeça e fazia dançar no ar suas ondas dourado-médio de farmácia.
E ele vinha alcançá-la e a abraçava com a ternura e a saudade dos amantes incertos, fazia voar sua saia em ondulações performáticas e floridas, e o movimento da organza fina ia propagando ondas de eletricidade no ar que alcançava os transeuntes desavisados, os taxistas enfadados e os pedintes esfomeados. E a esses movimentos se seguiam outros quase tão ensaiados quanto, de virar de pescoços, espichar de olhos e cair de queixos.
E depois de transformar a sóbria secretária-recepcionista bilíngue em uma festa de cores e formas e cheiros e encantamento, ele seguia, virando outras esquinas, abraçando suas outras amantes, fazendo dançar outras saias...

você


você exercício de mim
você olhos, rasgos
você montes de palavras ditas, não ditas, espremidas entre nós dois
você medo
você braços e bocas e léguas de mim
você zumbido no ouvido
você som
você passos, e rodas e pés espertos
você frio

você barco, mergulho, mato
você saudade...

12 julho 2007

do que faltou


das mil coisas feitas, ditas e sonhadas faltou uma.


faltou dançar uma dança,

aquela de rostos colados e dedos entrelaçados,

aquela de respiração pesada e olhos apertados.

faltou que a dança fosse na rua,

não na praça ou na calçada,

mas bem no meio da rua.

e faltou que no meio dela chovesse.

e chovesse muito, e chovesse forte,

e a chuva açoitasse os dançarinos,

e caisse muita água,

água de lavar todo rancor da alma,

de molhar os nãos secos,

de lavar as horas embotadas de espera,

de liquefazer todas as dores e amolecer o peito duro.


de tudo que houve, faltou a chuva.

Ábaco


Olhava as riscas do lençol. E seus olhos se perdiam numa ilusão de óptica.

Lembrava que as linhas que viravam curvas a divertiam quando criança.

Hoje sabia que ilusões podem ser bem menos divertidas.

Olhava as listras como se nela fizesse seu ábaco, e nele fosse contando os dias, os meses, as distâncias, todos os números da sua prostração.

Em criança, nunca gostou de números.

05 julho 2007

Margaridas


Ela me vinha visitar às vezes.
Chegava no fim da tarde, surpreendendo a hora indecisa do dia.
Vinha com sua leveza.
Ela era leve,
Leve onde eu não lembrava mais que se podia.
E eu era tão pesada...
Ela trazia margaridas, que colocava sobre minha mesa, e mesmo depois de ela ir embora, as flores miúdas continuavam trazendo o inusitado daqueles olhos alegres.
E eu gostava de vê-la passeando pela casa, gostava do jeito que encostava de leve nas coisas, do jeito que caminhava fluida, e do seu vestidos de tons de céu.
E ela me mostrava coisas bonitas, foi ela quem nem mostrou a sombra das árvores na parede da sala ao cair da tarde, ela me ensinou a rir das paredes. Embora quando ela se vá eu não lembre direito como fazer.
Ela desenhava coisas com os dedos no ar, e os desenhos tinham a cor que ela escolhesse.
Ela era tranquila,
Tranquila onde eu achava que não se podia.
Eu era tão afobada...
Depois ela se levantava,
me fazia um carinho na face com a concha da mão.
E arrastava na barra do vestido todo o cheiro de sol que trouxera.
Ela descia as escadas cantando...

Roupa de baixo



Tira do armário empoeirado e veste.
Esse sorriso apertado, com cheiro de guardado, é tua roupa de gala.
Remenda se preciso, lavando fica novo.
E leva com graça...
Assim, ninguém há de perceber que a mágoa estampa sua roupa de baixo

04 julho 2007

Cafuné é aquela coisa que faz voar pra dentro de si mesmo.
O que mais impressionava não era a voz da cantora,
nem sua afinação, nem mesmo o tom.
Mas a forma como ela fechava os olhos serenamente ao emitir os agudos mais estridentes.
Como se com uma tesoura, se pudesse separar a boca que gritava dos olhos que adormeciam.

Infinitivo

dos verbos que eu escolhi pra enfeitar nosso lar,
sobraram poucos.
os mais bonitos eu levei comigo,
pra sair conjugando pela vida afora.
esses que eu deixo no seu jardim e sobre a mesa,
devem ficar assim mesmo.
sem complementos, no infinitivo.

hora muda


Agora era aquela hora muda,

de levantar e tentar não se encarar nos olhos.

E procurar sob a cama o sentido de tudo aquilo.

E fingir esse sorriso estreito, e tentar um olhar desfeito.


E ela ia me abrir a porta, e ia me dar um beijo,

na testa talvez,

e ia ensaiar qualquer volte sempre


o elevador me sorria cínico,

o porteiro me olhava crítico,

o sol me cozinhava aos poucos...

Lígia


Falavam sobre música, talvez sobre literatura, sempre sobre linguagem.


E Ligia acendia seu último cigarro.


Discutiam a mensagem, e canal, receptor.


Lígia era o ruído.


Eles, horas vazias a empilhar conceitos.


Ela, a análise simples.


E enquanto eles se perdiam nos meandros de teorias inventadas,


ela tomava um sorvete de menta.